quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Uma crítica ao 'Elogio de Marx ao Empreendedorismo'¹

¹Texto do Professor José Crisóstomo de Souza em A Terra é Redonda

Avenida 7 de Setembro, comércio popular de salvador. por Agência de Notícias das Favelas


Começo esse texto dizendo que estou me metendo contra um gigante. Digo também que nada tenho além de admiração pelo gigante e que meu objetivo é apenas movimentar o debate e contribuir com meus tostões ao tema. Ressalto ainda que não tenho qualquer intenção de debater o que Marx disse ou deixou de dizer, ou sua psicologia ou rede de crenças, a questão aqui é como transformar o brasil (e o mundo) para que ele seja um campo fértil da emancipação do ser humano.

Existem algumas questões que eu quero pontuar, e muitas perguntas que gostaria de fazer para lavar minha ignorância, mas vou me concentrar em comentar três aspectos do texto:

Vou começar apontando a ausência do horizonte da tomada do poder para a realização do “Humano-Comunal” e de como isso afeta as próprias perspectivas de construção do poder popular, depois vou apresentar uma definição para empreendedorismo (supreendentemente ausente do texto), argumentando sobre as distinções da forma contemporânea e o que seria aquilo que Marx defende em O Capital, e por fim, vou fazer alguns comentários gerais sobre a conclusão do texto, focado em contribuir na melhoria das condições de vida e luta da classe trabalhadora.

Marx sem Política?

O autor inicia o texto mostrando uma certa visão Marxiana que articula alguns aspectos que considero secundários na obra o velho barbudo. Sem querer especular acerca dos porquês, destaco apenas a ausência dos aspectos políticos da obra de Marx, notadamente a tomada do poder como condição necessária para a emancipação do ser humano. Em que pese isso possa ser fruto da minha própria ignorância, já que essa referência pode ter ficado perdida entre erudição do autor e a falta da minha parte, me parece estranho que ao falar da obra de um homem cujo objetivo explícito era mudar o mundo, que atuou politicamente, intelectualmente e filosoficamente nesse intento, que esse elemento não esteja explícito, de cara, nos primeiros parágrafos, e não escondida atrás de definições como um maior florescimento e auto-provimento, sustentável, das pessoas, dignificadas, por seu melhor acesso a melhores meios e competências.

A questão aqui, naturalmente, se conecta com o título. E parece apontar para uma emancipação humana dentro do capitalismo e, por que não, pelo capitalismo, o que é, no mínimo problemático, já que a base do capitalismo é a exploração humana, na forma da mais valia, e a emancipação é o fim desse ciclo de exploração. Em termos gerais, entretanto, é possível concordar com a definição proposta de “Progressista-Emancipatório Humano em marx”, mas os meios concretos para chegar até esse ponto não parece ser pela via do capitalismo, muito menos do empreendedorismo.

Ideologia e Empreendedorismo

E por falar em empreendedorismo, note que o autor não o define. Ele parece deixar de lado essa parte, talvez apostando no senso comum ou talvez cometendo um anacronismo, deixando que se pense que o trabalho autônomo do século XIX e o trabalho autônomo hoje são a mesma forma de empreendedorismo.

Seja como for, talvez o mais importante a se notar é que o trabalho autônomo e a produção independente não era lá e não é hoje e jamais será dentro do capitalismo uma forma hegemônica. Pura e simplesmente porque não representam a vanguarda da produção. É importante salientar que a questão do desenvolvimento das forças produtivas independe do modo de produção, já que é nesse sentido que Marx chama corretamente a experiencia dos EEUU como mais avançada, e da mesma forma ele trata o capitalismo com relação ao antigo regime. É ainda nesse sentido também que o processo de transição Socialista deve superar (suprasumir?) o capitalismo.

Então, por mais elogios que o trabalho autônomo receba, seja de marx ou de qualquer outra pessoa, ele não tem como ser o motor de uma sociedade, já que é, era e continua sendo uma forma menos avançada do que o grande capital. Traduzindo para o brasil, será impossível nos tornarmos um país desenvolvido mesmo no contexto do capitalismo, à base de carrinho de cachorro quente, padaria, hotel, bolo de pote, uber e onlyfans. O desenvolvimento do país passa necessariamente pelo aprimoramento das forças produtivas, com vias de ocupar a vanguarda da produção técnico-científica. Novamente, mesmo no contexto do capitalismo.

Mas então por que o empreendedorismo aparece como solução? A questão aqui está no citado A Ideologia Alemã. Onde Marx debate ideologia. Para ele, a ideologia hegemônica de um tempo histórico é a ideologia da classe dominante. Além disso, a ideologia é um véu que obscurece a visão, impedindo que o sujeito enxergue a realidade das relações de poder. Por último, a ideologia faz com que os interesses da classe dominante sejam espalhados pela sociedade na forma de interesse comum.

Tendo isso como base, vamos olhar o que acontece na realidade brasileira. 12 em cada 10 brasileiros dirão que trabalhar sem patrão é melhor que o trabalho assalariado, fora o salário mínimo, que não dá pra nada, o assédio moral, sexual, as humilhações, constrangimentos e toda sorte de desgraça acontece com o trabalhador. E sim, abrir um negócio faz parte da realidade do brasileiro e sempre foi uma forma de ascensão social. Isso é empreendedorismo? Não! Isso é o trabalhador se virando. Isso é corre, é correria, é trabalhar.

O que é Empreendedorismo então? É uma parte da ideologia burguesa que vai agir nesse sujeito revoltado com o trabalho assalariado e vai dizer que ele vai se tornar empresário, colocando-o subjetivamente do lado de Jorge Paulo Lehman, ainda que ele trabalhe 15 horas por dia e fature 5 mil por mês, vai dizer a ele que patrão trabalha muito e que para ele ter sucesso ele tem que acordar 4 da manhã e tomar banho gelado e que vote pela flexibilização das leis do trabalho e não taxação de bilionários porque aquele é seu destino.

Empreendedorismo é a mentira de que se cada um resolver sua vida, todo mundo fica bem. É a utopia da atomização da sociedade sem questionamento do grande capital, com a reprodução da exploração capitalista e da transferência de renda dos trabalhos menos produtivos para os mais produtivos, da barraquinha de cachorro quente, pra o grande varejo/atacado, para as Searas e Gujões da vida.

Materialismo Consequente e Condições da Luta de Classes no Brasil

Vou finalizar essa crítica com os últimos dois blocos. O início penúltimo bloco o autor expõe uma suposta contradição. Aquela em que marx teria uma espécie de cronograma da sucessão de arranjos produtivos esperando para acontecer e um apreço por uma análise material e concreta da história. A primeira, supostamente revelaria um aspecto abstrato de realização do gênero humano e a segunda uma capacidade aguçada de acessar e desvelar a realidade diante de si, fazendo-o supostamente elogiar o “empreendedorismo”.

À essa altura, a gente sabe que marx não está lidando com a forma contemporânea de empreendedorismo, no nosso desastroso capitalismo tardio. Então, não. Marx não faz um elogio ao Empreendedorismo. De fato, ele faz uma análise material da história como lhe é recorrente, mas não há uma relação com a produção autônoma ou independente com o futuro do capitalismo, não porque ele não acreditasse nisso, ou desejasse, mas não seria aquele o caminho que o capitalismo trilhou todas as vezes em que as experiências nacionais dos diversos países do centro do capitalismo chegaram. O capitalismo tem suas tendências e a história mostra que o caminho do capital é um só.

Fora esse trecho, que talvez seja a razão de todo texto, já que parece apreender empreendedorismo como sinônimo trabalho autônomo não assalariado, conectando isso ao “elogio” de marx, esse bloco do texto é excelente e exorta a toda a esquerda e os marxistas a se soltarem de suas pieguices e subjetivismos para se concentrar na análise concreta da realidade concreta. O que me incomodou nesse ponto foi, como pensar que um homem que fez uma análise concreta da realidade concreta sempre que pode, sem nenhum tipo de reservas aceitou a realidade tal como ela era, não ter feito o mesmo ao observar o processo de sucessão de modos de produção e como eles concretamente se sucedem e deixou ao abstratismo determinista uma linha reta entre capitalismo e comunismo, que apareceria como passe de mágica por necessidades do próprio sistema.

A questão aqui é que como o autor deixou de fora a luta de classes e a disputa pela conquista do poder pela classe trabalhadora, é impossível operar a transformação dos modos de produção de forma concreta, já que, se o fizer, verá que não há registro na história de qualquer realização humana em termos reformistas, graduais, lentos e seguros. Toda revolução socialista no planeta envolveu quebra com o poder instituído que não necessariamente era um poder burguês e sempre envolvia forças estrangeiras (já que imperialismo) interessadas em se apropriar das riquezas locais. Aliás, as revoluções burguesas, séculos antes, tiveram o mesmo tom.

Então não, para um materialista nunca será uma questão de esperar sentado o capitalismo cair pelas próprias fraquezas (se Marx disse isso, ele estava errado), nem o próprio marx, ainda que não seja o meu foco aqui, viveu uma vida de indiferença aos processos políticos e das lutas de classes em seu tempo. É preciso e sempre foi assim, organizar os trabalhadores para a tomada do poder e o exercício do poder popular. Sem isso, seremos todos sortudos se sobrevivermos, como espécie, ao capitalismo.

Então sim, o materialismo prático de Marx nos oferece instrumentos de análise concreta da realidade concreta, para que atuemos nessa sociedade, inclusive para entendermos que a tomada do poder é pressuposto da jornada para a emancipação do ser humano, mas não é só aí que a luta deve se dar. No último bloco, o autor dá uma breve pincelada sobre o que seria o brasil e critica corretamente a esquerda hegemônica e suas tendências pós modernas, por falta de um projeto nacional, acertando novamente, apesar do receio ao usar a (má) palavra, nacional.

Mas é, de fato, o que a esquerda precisa fazer. Precisa apontar para esse horizonte de emancipação humana, mas sem perder de vista a Questão Nacional, presente em todos os trabalhos de todos os grandes marxistas, de Lênin a Fidel, passando por Rosa e Mariátegui.

Pra finalizar, queria realmente saber se o interlocutor, o Ministro Fernando Haddad, acha realmente que o teto de gastos do governo é um caminho para a melhoria das condições de luta e trabalho da classe trabalhadora. Se as privatizações protagonizadas pelo BNDES de presídios, creches, escolas e hospitais vão gerar no futuro alguma tração para a classe trabalhadora avançar para a tomada do poder tendo melhores condições gerais de vida, trabalho e luta. Será que a expansão das escolas superiores privadas foi um grande trunfo dos governos lula/dilma ou foram a base da constituição de uma nova burguesia nacional instrumental na derrubada da própria presidenta?

Acredito que se estamos querendo a emancipação humana e se o horizonte hoje está longe de revolucionário, é preciso que criemos as condições para avançar, é preciso que ao invés de precarizar trabalho e fortalecer o agronegócio, se organize os trabalhadores, melhorando suas condições de vida, trabalho e luta, para que eventualmente reunamos condições para concretamente tomar o poder e finalmente vencer.

Nenhum comentário: