sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Os Amaldiçoados

Essa é a última, pensou Altmer Tallarus, o Galante. Olhando para a cambaleante caneca a sua frente, sobre o igualmente e curiosamente sincronizado balcão. O veterano cantador já teve dias melhores, na companhia de bravos guerreiros enfrentou e contou histórias épicas e trágicas. O ouro veio das aventuras mas as glórias, mulheres e recompensas vieram de seu talento de contador.

Já tendo passeado pelos mais nobres salões de Aritéia, conhecido reis e rainhas, condes e condessas, duques e duquesas, hoje se reduz a uma espelunca nos arredores de Damar. Viajou o máximo que pode pra tentar não ser reconhecido, mas parecia que não havia magia que escondessem sua verdadeira identidade. Maldito Dragão.

A mente de Altmer voltava ao momento que amaldiçoava sempre que podia. No auge da sua fama, foi procurado pelos heróis de Drakaris para enfrentar e relatar o maior e mais épico dos seus feitos até então. Maldito Dragão. Modar, príncipe herdeiro do norte deveria trazer ao seu pai e rei a recompensa do dragão, para mostrar-lhe sua capacidade, desde que Skjar Borl trouxe seu povo e colonizou o norte, fugindo da Calamidade as coisas eram assim em Drakaris. Maldito Príncipe.

Eram todos poderosos, conhecidos por toda Aritéia. o príncipe e sua pequena comitiva eram verdadeiros heróis no continente e a peregrinação do jovem príncipe deveria acabar no covil de um dragão e tomar para si uma recompensa. Maldito Príncipe. Não se sabe muito bem o que era, as histórias são meio confusas, chifres, escamas já foram levadas, às vezes o príncipe aparecia de mãos vazias, uns morriam outros não. Malditos Nortistas.

Quando aceitou, sem muito pestanejar, mas muito barganhar, Altmer lembrava da felicidade e de como flertava selvagemente, com uma das elfas da companhia. Maldita Maga. Ele pensava em como foi descontraída e sem maiores problemas a viagem. raros eram aqueles que não temiam o poder do grupo, e as criaturas que não os conheciam tinham pouco temo pra assimilar o fato. Maldito grupo.

Altmer lembrava inconsolável de ter hesitado ao entrar no covil de Paddhrarrurkhrashnar, o Negro, conhecia toneladas de lendas sobre aquela criatura, mas nunca imaginou sentir que cada uma delas era pouco para o temor que sentiu. A aura do mal se aproximava dele como sem ele querer e sem entender era sugado para dentro daquela caverna, como se não tivesse mais controle do seu corpo. Seu batimento acelerava e um vento frio arrepiou sua espinha. foi tirado do transe pelo abrir da porta. O vento frio e a neve que entrava pela soleira traziam consigo uma figura sombria, não diferente do próprio Altmer, ou de qualquer outro que frequentava aquelas bandas.

Mirrin, o taverneiro, fechou a porta e nem esboçou pegar o casaco do visitante, indo direto pra cozinha. Altmer perseguiu a nova figura, que se dirigia à lareira, com curiosidade. o som metálico de seu caminhar produzia um som metálico característico de homens de armas. Ao que o visitante retirava os casacos e peles os repousando nos ganchos perto da lareira, Altmer notou a única peça que se distinguia do preto profundo das demais, uma espada longa embainhada, cabo ornado de pérola, fios de ouro e lã branca, a empunhadura era o símbolo da justiça em ouro, ouro branco e pérolas. A bainha no mesmo tema, mas a lá branca predominava, costurada com fios de ouro e um ornamento na ponta com uma pérola no centro. Havia poucos indivíduos que não olhassem para aquela arma e não soubessem, de cara, o que ela era.

Uma vingadora Sagrada não combina com esse sujeito, talvez um caído. O homem todo de preto já era um veterano e tinha um cabelo ralo que começava na altura da orelha e escorria cacheado até depois dos ombros ele tinha a espada branca sobre o colo, todas as outras armas haviam sido colocadas à sua frente sob suas roupas de frio, e eram muitas, todas pretas, sem ornamentos. O feeling do meio-elfo era certeiro nessas coisas e ele sabia que não havia sequer uma daquelas peças que não tivesse sido tocada por magia, ainda que o farol branco sentado no colo do homem ofuscasse todas as outras nesse aspecto.

Mirrin chegou com o jantar e serviu o homem sem dizer uma palavra, apenas recebeu uma moeda. de ouro. Altmer estava distraído com seu interesse por aquela figura que não notara que o medo e o frio não haviam passado, Olhava para aquela figura e lembrava do dragão que o amaldiçoara, menos intenso, mas o mesmo sentimento. Quando o meio-elfo pensou em vingança, sua mão já estava no cabo da rapieira mas um olhar de soslaio do guerreiro em ébano o demoveu rapidamente. Altmer se recompôs e tornou a sua caneca ainda cheia, menos cambaleante. Estava tão obcecado com sua própria maldição que nunca lhe ocorrera que alguém pudesse estar sofrendo mais que ele.

Olhou novamente o homem que agora comia sem muito prazer o que lhe havia sido servido, com a Vingadora coberta por um pano marrom. Tinha medo, medo daquele homem. Pelas suas contas quem não o tivesse era tolo ou ignorante. mas apesar daquela barreira imposta pelo homem de preto, era visível para o bardo que havia uma tristeza esmagadora por trás daquele olhar. Em meio a um certo alívio, por não ser o ser mais miserável da criação, havia algo que Altmer nunca experimentara antes, ele julgou que fosse empatia. Toda sua vida o meio-elfo acreditou que riqueza e glória fossem o caminho da aceitação, depois da maldição, quando viu tudo que construíra ruir, quando se viu abandonado pelos antigos amigos e aliados, negado pelos reis, rainhas e nobres que tanto bajulou e depois de anos tentando sem sucesso reaver sua fortuna e riqueza, culpava a todos, mas principalmente O Negro e o maldito grupo que o levara até ele. Pela primeira vez, teve um lampejo de que nada daquilo fora real, aquilo tudo era maquiagem, fumaça e espelhos.

Tomou a caneca em suas mãos e com toda coragem que pôde reunir se dirigiu à lareira. A cada passo que dava uma das milhares de vezes que se apresentou a quem quer que fosse passava em sua mente. Sentia que era acompanhado pelo olhar do guerreiro e passou por ele e se apoiou com uma das mãos na parte superior da lareira. Depois de alguns segundos fitando as chamas, jogou o conteúdo da caneca dentro do fogo. Ele não esperava mas o que quer que estivesse bebendo criou uma pequena explosão que quase queima as desgastadas penas de sua jaqueta. Dando um passo para trás, olhou em volta pra saber se alguém ria dele, mas não tinha essa sorte, não mais. Caminhou pesadamente até a segunda poltrona em frente à lareira e sentou-se.

Você sabe quem eu sou, não?, perguntou Altmer, fitando a lareira. Sem resposta, virou-se ao guerreiro e disse, seco, Você sabe quem sou eu. O Homem em preto virou o rosto apenas o suficeiente para que seu olhar alcançasse o meio-elfo roto, depois voltou-se para a comida. Eu não ligo pra quem você seja, Mas você SABE, retrucou Altmer olhando para seu interlocutor, que por sua vez virou-se novamente e olhou minuciosamente o Bardo. não precisou de muito, e boa parte do tempo em que olhava para Altmer o homem passou tentando se lembrar como sabaia aquilo, já ouvira aquele nome, certamente, haviam canções de sua autoria que antigamente eram cantadas em todos os tipos de lugares, entretanto não lembrava sequer uma. Você é Tallarus, o Amaldiçoado. Altmer forçou um sorriso, E não somos todos? Odiava aquela alcunha. Mas eu, por falha minha, devo adimitir, não o conheço. Não é todo mundo que anda por aí com uma Vingadora Sagrada que não lhe pertence. Altmer fez toda força que pôde pra não se encolher como criânça na poltrona e implorar desculpas, sentiu o olhar e a sombra aterradora do veterano ao seu lado. Quando o terror se estabilizou, arriscou um sorriso, Não tenho nenhum interesse nela, ou em seus motivos. O guerreiro se acomodou novamente na poltrona sem saber exatamente o quê, ou como responder àquela situação. Então, por quê me incomoda? Altmer tentava controlar a respiração e rezava para seu coração não sair por sua boca, concentrava-se na lareira e no fogo. Estou interessado na sua história, essa é minha vida, você bem sabe, contar histórias, posso contar a sua, se compartilhá-la comigo. O guerreiro olhou para a vingadora sobre seu colo e imaginou sua trajetória de dor, violência e desespero cantada aos quatro ventos, não, ele não era um exemplo pra esse mundo, ele deveria ser esquecido.

Levantou-se da poltrona, atou a vingadora a seu cinto, pegou as armas e ao passar pelo meio-elfo disse, Passo, minha história não acrescentará nada de bom a esse mundo, apenas ódio, medo e desgraça, eu não preciso ser lembrado e sim esquecido. seguiu sua trajetória até os quartos que ficavam ao fundo da estalagem e não viu o sorriso se alargar na face de Altmer. Então você não entendeu minha proposta Senhor, disse em voz alta. Curioso, e um tanto confuso, o veterano parou. Altmer levantou da poltrona e caminhou em sua direção, Aqueles que desejam que seus feitos sejam registrados e celebrados nos reinos de Tamaria e além, aqueles que desejam que seus nomes sejam imortalizados nessa existência e através da história contratam para caminhar consigo habeis menestréis, mestres das palavras das canções e do contar histórias. Tais menestréis, entretanto não são imortalizados pelos seus prórios atos, não, é através da arte, do conto e do canto, que esses homens serão conhecidos pelo mundo, Ser cantado por todos, requisitados por nobres, reis e bravos aventureiros, essa é a glória de um bardo. Altmer, agora já face a face com o veterano, saboreia a pequena confusão em seus olhos, Se esse é nossa Glória, Veterano, qual a nossa maldição?