sexta-feira, 20 de julho de 2012

O STF, a Anistia e o Esquecimento


A Comissão da Verdade, recentemente criada pela presidenta Dilma Rousseff, tem suscitado diversas polêmicas, especialmente a sobre a possibilidade de persecução e punição dos agentes políticos envolvidos na repressão. A questão parece resolvida, ao menos juridicamente, pela Lei da Anistia, já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como inteiramente constitucional. Isso, no entanto, não satisfaz nem ameniza o desejo declarado de retribuição de muitos dos que foram ou que se sentiram ofendidos pelo regime ditatorial. Será esse o caminho da reparação histórica e da consolidação da democracia?

De início, é preciso fazer um esclarecimento: não acredito nas penas privativas de liberdade. O cárcere é mais uma espécie de violência em nossa sociedade, nomeadamente nas condições desumanas que aqui no Brasil se dão. Se há algo de útil ou proveitoso na punição é o processo que leva até a ela. Este sim tem algum poder de promover a catarse necessária para se superar as mazelas provocadas pelo delito.

Para isso, entendo que ele - o processo - deveria ser feito com o máximo de oralidade e o mínimo de papéis, em sessões e audiências que não fossem públicas para não transformar o acusado em bode expiatório de uma sociedade cheia de culpas, mas que ao menos permitissem aos interessados e envolvidos se acusarem e se defenderem pessoalmente. Assim, o acusador não trataria de um mero nome em um papel, mas de uma pessoa concreta. Esta pessoa não teria que enfrentar apenas laudas de termos técnicos sobre um episódio qualquer, mas sim as implicações e os significados sociais de seus atos.

Após esta verdadeira via crucis, a prisão, que já é inútil, pois só atinge cerca de um por cento dos crimes, perderia também sua importância simbólica, pois o sentimento de justiça já estaria satisfeito. Aí, as medidas que atualmente são secundárias a exemplo da perda de direitos, de licenças, do poder familiar, bem como a necessidade de reparação dos danos, etc., seriam suficientes para neutralizar os efeitos do crime e prevenir novas ofensas.

Trata-se sem dúvida de uma utopia, mas que serve para destacar dois pontos importantes: a prisão é uma violência em si mesma; enfrentar os fatos e reparar os danos é indispensável. A decisão do STF na ADPF 153 sobre a Lei 6.683/79 - a Lei da Anistia - permitiu que esses dois pontos pudessem ser efetivamente atendidos nesse momento em que a sociedade brasileira finalmente resolve se debruçar sobre os eventos brutais que marcaram o regime militar.

Embora isto não se leia nos votos, este é o efeito da decisão que afastou os abusos cometidos pelo Estado a partir de abril de 1964[1] apenas do crivo penal. Com efeito, apesar de apontarem sua reprovação dos atos de tortura, assassinato, etc., alguns ministros fazem menções expressas e preocupantes ao esquecimento. Assim faz o relator, ao citar o Ministro Laudo de Camargo em pronunciamento sobre questão semelhante em 1945, onde afirmou que o intérprete deve aplicar a Lei conforme a intenção do legislador, que naquele momento, tal como em 1979, era a de lançar “perpétuo olvido aos delitos”. Igual caminho segue a Ministra Ellen Gracie quando apela à acepção grega de anistia que suscita esquecimento e oblívio. Felizmente, a parte dispositiva da decisão apenas valida a Lei; não impõe o esquecimento.

De certo, não estavam em questão nem o direito à verdade, nem à memória. Como esclarecido no parecer da Procuradoria da República, citada em diversos votos, inclusive o do relator, a “extensão da anistia aos abusos da repressão terá efeitos meramente penais”. Ou seja, “outros efeitos da atuação dos agentes estatais no período indicado não estão fora das consequências jurídicas dos desbordamentos éticos e legais [...] a partir do amplo e total conhecimento do que ocorreu nos [...] ‘desvãos da repressão política”, nas palavras da Ministra Carmem Lúcia.

Não se nega aqui que a Lei da Anistia foi fruto também de um esforço dos militares de usar os derradeiros momentos no Poder para frear a inevitável responsabilização pelos que crimes cometidos por eles e seus agentes, todos conscientes de sua iniquidade. Nessa medida a Lei é profundamente reprovável. Contudo, esta iniciativa visava também a prevenir prováveis gestos de revanchismo por parte da nova estrutura estatal que se formava. Seguramente, o direito penal seria perfeito instrumento para, dentro de um regime democrático, ou das aparências de democracia, infligir aos perseguidores as dores que estes promoveram, invertendo os lugares de torturador e torturado.

A decisão do STF impõe a melhor solução possível para este problema. Não cabe, como não deveria em momento algum caber, retorno ao passado para distribuir culpas e impor expiações. Porém, resta possível tudo mais, inclusive o mais difícil: revisitar as memórias, reler os documentos, ouvir os relatos, achar os corpos escondidos. Cabe deixar a dor se expressar, desatar o choro contido, sentir a repulsa e elaborar, como defendem os psicanalistas, esta fase da história do Brasil. Só assim será possível seguir enfrente, só depois de se reencontrar com este lado macabro da nossa humanidade, de reconhecê-lo possível e de aprender a lidar com ele.

Infelizmente, não podemos concordar com o Ministro Ayres Britto e chamar de monstros, de não humanos os agentes por trás da repressão. Tem razão o Ministro quando afirma que o torturador é aquele que encontra intenso prazer diante dos mais intensos sofrimentos alheios. Isso, infelizmente, não os torna menos humanos, posto que o prazer, o gozo para evocar mais uma vez a psicanálise, é elemento marcadamente humano. E isto implica estender a estas pessoas todo o complexo de garantias vigentes em nosso sistema democrático, fazendo por elas o que não foram capazes de fazer com os quem estava sob sua custódia. É apenas como humanos que eles podem responder pelos seus atos e, sem que seja necessário promover uma caça às bruxas, sem que se acendam fogueiras, podem perder suas patentes e benefícios previdenciários, estipêndios e honrarias, bem como serem chamados a indenizar os danos que causaram, a entregar os documentos que ocultaram, a prestar explicações à sociedade.

O fundamental, enfim, é enfrentar a história e não tentar negá-la ou desfazê-la com mais sangue. Os apelos pela punição dos agentes daquele regime ditatorial não devem ser tomados literalmente, mas como demandas pela lembrança, como gritos contra o esquecimento, pois não pode haver paz, não pode reconciliação sem antes assumir responsabilidades e velar os mortos.


[1] Apesar de o início oficial do regime militar ser o dia 31 de março de 1964, tendo o golpe ocorrido na madrugada, é possível afirmar que ele se deu efetivamente em 1º de abril. A data é simbólica e parece pertinente a um movimento autoritário que se dizia em defesa da democracia.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Que a Verdade


Todo poeta é ladrão. Não
Ladrão é o músico com suas tripas e liras
mas sonso são os dois
Dois amigos no vício
mas o poeta tem um pouco de ladrão

embora sonso seja mais a sua cara
que como o músico, rouba um pouco aqui e lá
só no limite oitavo, pra não plagiar
sonso naquele jeito que diz que sofre
porque de certo se tanto sofresse
morreria de overdose

o poeta na verdade então
é mentiroso por convição
não daquele jeito crônico
veríssimamente mentindo para o outro
(e pelo bem do outro)

O poeta mente pra sí
pega um pouquinho de algo
e transforma num mundo de coisas maravilhosas
e com um punhadinho de verdade
produz grandes mentiras
lindas mentiras

o poeta no seu auge
esquece daquilo que acredita
se deixa ausente do pragma que o guia
para se permitir tudo ter e dar
e eu, como poeta que não sou,
só digo a verdade, nada mais