A Comissão da Verdade, recentemente criada pela
presidenta Dilma Rousseff, tem suscitado diversas polêmicas, especialmente a
sobre a possibilidade de persecução e punição dos agentes políticos envolvidos
na repressão. A questão parece resolvida, ao menos juridicamente, pela Lei da
Anistia, já reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal como inteiramente
constitucional. Isso, no entanto, não satisfaz nem ameniza o desejo declarado
de retribuição de muitos dos que foram ou que se sentiram ofendidos pelo regime
ditatorial. Será esse o caminho da reparação histórica e da consolidação da
democracia?
De início, é preciso fazer um esclarecimento: não
acredito nas penas privativas de liberdade. O cárcere é mais uma espécie de
violência em nossa sociedade, nomeadamente nas condições desumanas que aqui no
Brasil se dão. Se há algo de útil ou proveitoso na punição é o processo que
leva até a ela. Este sim tem algum poder de promover a catarse necessária para
se superar as mazelas provocadas pelo delito.
Para isso, entendo que ele - o processo - deveria
ser feito com o máximo de oralidade e o mínimo de papéis, em sessões e
audiências que não fossem públicas para não transformar o acusado em bode
expiatório de uma sociedade cheia de culpas, mas que ao menos permitissem aos
interessados e envolvidos se acusarem e se defenderem pessoalmente. Assim, o
acusador não trataria de um mero nome em um papel, mas de uma pessoa concreta.
Esta pessoa não teria que enfrentar apenas laudas de termos técnicos sobre um
episódio qualquer, mas sim as implicações e os significados sociais de seus
atos.
Após esta verdadeira via crucis, a prisão, que
já é inútil, pois só atinge cerca de um por cento dos crimes, perderia também
sua importância simbólica, pois o sentimento de justiça já estaria satisfeito.
Aí, as medidas que atualmente são secundárias a exemplo da perda de direitos,
de licenças, do poder familiar, bem como a necessidade de reparação dos danos,
etc., seriam suficientes para neutralizar os efeitos do crime e prevenir novas
ofensas.
Trata-se sem dúvida de uma utopia, mas que serve
para destacar dois pontos importantes: a prisão é uma violência em si mesma;
enfrentar os fatos e reparar os danos é indispensável. A decisão do STF na ADPF
153 sobre a Lei 6.683/79 - a Lei da Anistia - permitiu que esses dois pontos pudessem ser efetivamente atendidos nesse momento em que a
sociedade brasileira finalmente resolve se debruçar sobre os eventos brutais
que marcaram o regime militar.
Embora isto não se leia nos votos, este é o efeito
da decisão que afastou os abusos cometidos pelo Estado a partir de abril de
1964[1]
apenas do crivo penal. Com efeito, apesar de apontarem sua reprovação dos atos
de tortura, assassinato, etc., alguns ministros fazem menções expressas e preocupantes
ao esquecimento. Assim faz o relator, ao citar o Ministro Laudo de Camargo em
pronunciamento sobre questão semelhante em 1945, onde afirmou que o intérprete
deve aplicar a Lei conforme a intenção do legislador, que naquele momento, tal
como em 1979, era a de lançar “perpétuo olvido aos delitos”. Igual caminho
segue a Ministra Ellen Gracie quando apela à acepção grega de anistia que
suscita esquecimento e oblívio. Felizmente, a parte dispositiva da decisão
apenas valida a Lei; não impõe o esquecimento.
De certo, não estavam em questão nem o direito à
verdade, nem à memória. Como esclarecido no parecer da Procuradoria da República,
citada em diversos votos, inclusive o do relator, a “extensão da anistia aos
abusos da repressão terá efeitos meramente penais”. Ou seja, “outros efeitos da
atuação dos agentes estatais no período indicado não estão fora das
consequências jurídicas dos desbordamentos éticos e legais [...] a partir do amplo
e total conhecimento do que ocorreu nos [...] ‘desvãos da repressão política”,
nas palavras da Ministra Carmem Lúcia.
Não se nega aqui que a Lei da Anistia foi fruto
também de um esforço dos militares de usar os derradeiros momentos no Poder
para frear a inevitável responsabilização pelos que crimes cometidos por eles e
seus agentes, todos conscientes de sua iniquidade. Nessa medida a Lei é
profundamente reprovável. Contudo, esta iniciativa visava também a prevenir
prováveis gestos de revanchismo por parte da nova estrutura estatal que se
formava. Seguramente, o direito penal seria perfeito instrumento para, dentro
de um regime democrático, ou das aparências de democracia, infligir aos perseguidores
as dores que estes promoveram, invertendo os lugares de torturador e torturado.
A decisão do STF impõe a melhor solução possível
para este problema. Não cabe, como não deveria em momento algum caber, retorno
ao passado para distribuir culpas e impor expiações. Porém, resta possível tudo
mais, inclusive o mais difícil: revisitar as memórias, reler os documentos,
ouvir os relatos, achar os corpos escondidos. Cabe deixar a dor se expressar,
desatar o choro contido, sentir a repulsa e elaborar, como defendem os
psicanalistas, esta fase da história do Brasil. Só assim será possível seguir
enfrente, só depois de se reencontrar com este lado macabro da nossa
humanidade, de reconhecê-lo possível e de aprender a lidar com ele.
Infelizmente, não podemos concordar com o Ministro
Ayres Britto e chamar de monstros, de não humanos os agentes por trás da
repressão. Tem razão o Ministro quando afirma que o torturador é aquele que
encontra intenso prazer diante dos mais intensos sofrimentos alheios. Isso,
infelizmente, não os torna menos humanos, posto que o prazer, o gozo para
evocar mais uma vez a psicanálise, é elemento marcadamente humano. E isto implica
estender a estas pessoas todo o complexo de garantias vigentes em nosso sistema
democrático, fazendo por elas o que não foram capazes de fazer com os quem
estava sob sua custódia. É apenas como humanos que eles podem responder pelos
seus atos e, sem que seja necessário promover uma caça às bruxas, sem que se
acendam fogueiras, podem perder suas patentes e benefícios previdenciários,
estipêndios e honrarias, bem como serem chamados a indenizar os danos que
causaram, a entregar os documentos que ocultaram, a prestar explicações à
sociedade.
O fundamental, enfim, é enfrentar a história e não
tentar negá-la ou desfazê-la com mais sangue. Os apelos pela punição dos
agentes daquele regime ditatorial não devem ser tomados literalmente, mas como
demandas pela lembrança, como gritos contra o esquecimento, pois não pode haver
paz, não pode reconciliação sem antes assumir responsabilidades e velar os
mortos.
[1]
Apesar de o início oficial do regime militar ser o dia 31 de março de 1964,
tendo o golpe ocorrido na madrugada, é possível afirmar que ele se deu
efetivamente em 1º de abril. A data é simbólica e parece pertinente a um
movimento autoritário que se dizia em defesa da democracia.